Responsável pela reforma das polícias sul-africana e congolesa, Eddie Hendrickx defende a polícia comunitária como modelo ideal
Ex-vice-diretor da Polícia Nacional belga, Eddie Hendrickx, 60 anos, esteve à frente do processo que reformulou e desmilitarizou apolícia no seu país, nos anos 1990. Como consultor independente, participou da reforma da polícia da África do Sul após o fim do regime de apartheid e atuou ainda na Irlanda do Norte, no Nepal e mais recentemente, na República Democrática do Congo. Hendrickx veio ao Brasil participar do 14º Colóquio Internacional de Direitos Humanos, organizado pela ONG Conectas em São Paulo.
ÉPOCA – O Brasil tem um dos maiores índices de morte por policiais do continente. Entre 2009 e 2011, mais de 11 mil pessoas foram mortas pela polícia, em números oficiais. A impunidade predomina e a violência policial é vista como um mal menor, como a única forma de combater o crime organizado. Como lidar com a cultura de impunidade e a indiferença em relação à violência na corporação?
Eddie Hendrickx – A única forma de mudar a cultura de impunidade é fazer com que as organizações competentes realmente investiguem toda alegação de violência e morte por policiais. É preciso levar as investigações a sério e fazer com que funcionem. Quando visitei algumas favelas com a Anistia Internacional no Rio de Janeiro, em 2008, observei as iniciativas de policiamento comunitário e elas me pareceram interessantes. O Estado devia se concentrar mais nesse tipo de iniciativa do que na continuidade da militarização das polícias. Não estou dizendo que não se deve combater o crime e as organizações criminosas, porque elas estão lá. Mas não se pode prestar um serviço, dentro das favelas, se você é apenas uma organização militar e se pensa apenas como uma organização militar.
ÉPOCA – A desmilitarização da nossa polícia é solução para a violência policial?
Hendrickx – Se "desmilitarização" for apenas um discurso, não tem utilidade. É preciso demonstrar na prática que existe uma organização policial renovada e que levará em conta os interesses e necessidades de cada cidadão. E eu vi os resultados em muitos países. Nas ocasiões em que você coloca cidadãos junto à polícia e outras autoridades para discutir segurança e mostra como juntos eles podem chegar a soluções, os níveis de sensação de segurança só melhoram. Para mim, é o único caminho. É um processo longo, que requer pessoas motivadas, vontade política e paciência. É uma decisão comum entre sociedade civil, cidadãos, e as pessoas responsáveis nos níveis políticos. É uma decisão que precisa ser tomada por todos e implementada. Como democracias, precisamos desmilitarizar nossas polícias. A oportunidade para fazer isso existe. Precisamos reorganizar nossas polícias baseados nos princípios do policiamento comunitário – prestação de serviços, parceria com a sociedade civil e prestação de contas.
ÉPOCA – Qual primeiro passo podemos dar?
Hendrickx – O primeiro passo é que a sociedade brasileira decida realizar esse processo. Acredito que políticos e governantes precisam ser convencidos da necessidade de fazer isso. E ver as vantagens de caminhar nessa direção. Se você quer reformar a polícia, é preciso que as autoridades políticas estejam completamente comprometidas com a iniciativa.
ÉPOCA – Desde 2013, houve um crescimento no número de protestos em massa no Brasil, como não se via desde o processo que levou ao impeachment do ex-presidente Fernando Collor. As forças policiais fizeram muito uso dos métodos considerados “não letais”. O Estado de São Paulo recentemente adquiriu um número de tanques lançadores de água e em outros estados, balas de borracha e gás lacrimogêneo são regularmente usados na contenção de protestos. Considerando sua capacidade de ferir e mesmo matar, esses métodos são mais seguros e de fato eficazes em conter multidões?
Hendrickx – É claro que são muito mais seguros do que armas comuns. Mas o que precisa haver é um entendimento, por parte da polícia e das autoridades que controlam a polícia, que o público tem o direito de expressar suas opiniões. A força policial deve ter como objetivo a não escalada de violência, e não, de partida, já pensar em utilizar todo o equipamento que foi colocado a sua disposição. Se a polícia contribui para a escalada, o problema só cresce. Acredito que esse não seja o objetivo das autoridades.
ÉPOCA – Como era organizada a Polícia belga antes de sua reforma em 1998?
Eddie Hendrickx – Se você olhar para a história da Bélgica, e da Europa como um todo, nosso sistema policial, legal e administrativo foi inspirado no modelo napoleônico. Inclusive, Espanha e Portugal levaram esse sistema para muitos países da América Latina, como o Brasil. Por isso, países do continente têm uma organização policial e judicial similar a da antiga Europa. Baseado nesse modelo, a Bélgica tinha uma polícia nacional militar, as polícias municipais e uma polícia nacional civil, um sistema muito parecido com o brasileiro. Havia muitos problemas de coordenação, compartilhamento de inteligência e informação, de ação conjunta e coordenação de conduta em protestos e no combate à criminalidade.
ÉPOCA - Por que a Bélgica optou pela reforma de sua polícia?
Hendrickx – O debate para a reforma da polícia na Bélgica começou em 1985 e foi até o meio dos anos 1990, sem resultado, porque os governantes não queriam tomar uma decisão final. Uma série de crimes cometidos por um sequestrador em meados de 1985 foi a faísca que levou o público a pedir a reforma da polícia. Ele raptava meninas, abusava delas e jogava seus corpos na floresta. Uma das causas apontadas para a demora na descoberta e prisão do criminoso foi a falta de coordenação e troca de informações entre as polícias. Centenas de pessoas foram às ruas pedindo a reformulação das instituições policiais, que começou em 1998.
ÉPOCA - Como funciona hoje?
Hendrickx – A Bélgica não tem mais uma força policial militar. Há um serviço policial baseado nos princípios de policiamento comunitário, o que significa que a polícia funciona como um órgão de prestação de serviço para cada cidadão e não mais como um instrumento de força para o governo local ou nacional. Houve um processo de repensar o que era o serviço policial, retreinar, reorganizar pessoas. Hoje, temos só um serviço nacional de polícia, dividido em dois – a polícia federal e as polícias locais. Quem está na liderança do policiamento é a polícia local, não a federal. A federal funciona como um apoio para as polícias locais. Isso previne e evita que autoridades nacionais vejam e usem a polícia como instrumento de poder para reprimir a população.
ÉPOCA – Por que o modelo comunitário é a melhor opção para policiamento?
Hendrickx – Quando se olha para a história da polícia no mundo, é possível ver que por muito tempo a polícia foi usada como instrumento do governo central para oprimir e implementar medidas. Pouco a pouco, a população passou a não considerar isso aceitável e exigir uma polícia que trabalhasse para e com as pessoas. Policiamento comunitário é essencialmente isso – juntar polícia e cidadãos, sociedade civil e autoridades políticas, para discutir quais são os problemas de segurança e conjuntamente achar soluções. Na República Democrática do Congo (RDC), o primeiro problema na segurança identificado pela população é iluminação pública, que é uma questão que a polícia não pode resolver. Veja, mesmo na RDC, um país que passou por um conflito sangrento, a principal demanda da população, na ponta, é iluminação. Para as pessoas se sentirem mais seguras, é preciso identificar os problemas de segurança reais no nível mais elementar e então buscar soluções. Esse é o tipo de pensamento que queremos introduzir quando atuamos na reforma dessas instituições -- que as comunidades falem com a polícia, com as autoridades, apoiados pela sociedade civil, para que se encontrem soluções para os problemas. E que essas organizações, e principalmente a polícia, possam prestar contas para esses cidadãos.
ÉPOCA – O senhor atuou na reforma da polícia da África do Sul, no período pós-apartheid, no início dos anos 2000. Quais foram os principais desafios desse processo? Como é possível fazer a transição entre a polícia de um regime autoritário e a de um regime democrático?
Hendrickx – Levou muito tempo e esforço. Minha tarefa foi reorganizar os departamentos policiais responsáveis por controlar distúrbios populares e manter a ordem pública. Em primeiro lugar, desenvolvemos uma abordagem filosófica diferente para a corporação, baseada nos princípios de policiamento comunitário. Em segundo, nós reavaliamos cada funcionário dentro da organização, algo em torno de 12 mil pessoas, que deveriam se comprometer e assinar um novo código de conduta elaborado nesse processo. Quatro mil pessoas acabaram excluídas e oito mil foram retreinadas a partir de princípios básicos de não uso da violência e dos direitos humanos. A implementação desse modelo pode ser considerada bem sucedida, pelo menos por um período de oito ou nove anos. Quando deixamos o país, em 2006, percebemos um processo de remilitarização da polícia sul-africana. Eles reintroduziram as patentes e a hierarquia militar. Existem estudos de pesquisadores sul-africanos que ligam o aumento do número de pessoas feridas e mortas durante protestos com a remilitarização da polícia. Foi o que nós vimos em Marikana (em 2012, 34 pessoas foram mortas pela polícia e mais de 70 feridas durante uma greve de mineiros na cidade sul-africana). Quando você vai olhar a forma como a polícia lidou com os protestos, eles completamente esqueceram de nosso modelo, não pensaram nos princípios. Foi um completo desastre. A abordagem foi completamente militarizada, com unidades predominantemente militares sendo utilizadas pela polícia para intervir durante a greve. Isso levou ao resultado trágico que nós vimos.
ÉPOCA – Temos visto uma onda de episódios de violência policial contra população civil, durante protestos, nos Estados Unidos, na Europa e no Brasil. As polícias estão falhando em evoluir com a sociedade que eles deveriam proteger?
Hendrickx – Considerando todas as instituições de monitoramento de polícias e os mecanismos de prestação de contas que já existem, há um número maior de pessoas registrando episódios de violência policial, o que contribui com o aumento nesses números. No caso específico da Europa, até alguns anos atrás, havia uma abordagem política de esquerda na maioria dos governos. Agora, isso mudou. Há um movimento para a direita. Então questões como imigração, percebidas como um problema, levam o continente a construir muros. Isso se reflete na polícia. Embora isso seja uma perspectiva em relação à Europa, acredito que seja válido para o que está acontecendo ao redor do mundo. Em democracias, é preciso ter muito cuidado para que as polícias permaneçam como instituições independentes, que tomem conta dos interesses e direitos de cada cidadão. É fácil para instituições policiais regredirem para uma abordagem repressiva. Eu vejo isso na Europa. Nós temos que tomar cuidado e nos certificar que os mecanismos de prestação de contas dessas forças funcionem da maneira correta.
ÉPOCA – Então, corpos independentes de monitoramento e prestação de contas são a melhor solução para evitar essa regressão a padrões abusivos?
Hendrickx – Sim, com ênfase na necessidade de seu caráter independente.
ÉPOCA – Nos Estados Unidos, uma das questões apontadas como razão para a truculência policial, primeiro em Ferguson e depois em Baltimore, foi um excedente de equipamento militar em instituições de segurança nacionais e que depois foi distribuído para departamentos de policiamento local. A disponibilidade de equipamento militar estimula as polícias locais a os utilizarem?
Hendrickx – Sim. Se você dá certos equipamentos para polícias locais, de tasers a rifles, então a probabilidade de que eles serão usados em algum momento é maior. É preciso se certificar que tanto os policiais quanto a corporação continue pensando nos princípios de policiamento comunitário. E que a prestação de serviços é para todos e não para um grupo específico, seja branco ou seja negro.
ÉPOCA – Como se lida com esse problema de a polícia suspeitar mais frequentemente de um determinado grupo racial?
Hendrickx – Já no recrutamento de sua força policial, as autoridades precisam se certificar que todos os grupos que compõem a sociedade precisam estar bem representados. Eu não tenho os números, mas a imagem que a polícia americana tem no momento é de uma instituição predominantemente branca, que defende os interesses da população branca. Se esse é o caso, isso é errado, eles precisam trabalhar para mudar essa imagem. É preciso haver uma mudança cultural na instituição. Novos treinamentos, revisar processos e procedimentos, trabalhar o modo como os policiais pensam e agem, e de novo, na prestação de contas. Se certificar que os mecanismos de prestação de contas e supervisão existem e podem ser profissionalmente aplicados em campo.