NOTA TÉCNICA
Tendo em vista à posição assumida pela Federação Nacional de Entidades de Oficiais Militares Estaduais – FENEME, no sentido da “incompatibilidade jurídica da implantação da denominada carreira única no atual modelo constitucional”, a ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE ENTIDADES REPRESENTATIVAS DE PRAÇAS POLICIAIS E BOMBEIROS MILITARES ESTADUAIS – ANASPRA, associação de âmbito nacional, que congrega 25 (vinte e cinco) entidades, vem, perante seus representados e a sociedade brasileira, esclarecer questões controversas sobre a constitucionalidade de sua proposta.
1. A Constituição de 1988, no §6º de seu artigo 144, estabelece que as polícias militares e os corpos de bombeiros militares, forças auxiliares e reserva do Exército, subordinam-se aos Governadores dos Estados e do Distrito Federal. Diz, também, no §7º, que “a lei disciplinará a organização e o funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança pública, de maneira a garantir a eficiência de suas atividades”.
2. Desde então, os Estados e o Distrito Federal passaram a legislar sobre a matéria, embora a origem das polícias militares e dos corpos de bombeiros remeta, historicamente, aos corpos de polícia das províncias, instituídos ainda no século XIX, sobretudo a partir do Ato Adicional que reformou a Constituição Imperial (Lei nº 16, de 12 de agosto de 1934).
3. Ocorre que, no plano federal, a legislação ainda vigente é o Decreto Lei nº 667, de 2 de julho de 1969, que “reorganiza as polícias militares e os corpos de bombeiros militares dos Estados, dos Territórios e do Distrito Federal e dá outras providências”. Isso significa dizer que, apesar do advento da Constituição de 1988, a organização das polícias militares e dos corpos de bombeiros estaduais permanece sendo regida por decreto do Gen. Costa e Silva, cuja recepção constitucional é duvidosa.
4. Tal legislação, ao dispor acerca do “pessoal das polícias militares”, estabelece estrutura hierárquica (art. 8) baseada na do Exército, distinguindo os quadros de “Oficiais de Polícia”, “Praças Especiais de Polícia” e “Praças de Polícia”. As formas de ingresso na corporação são, basicamente, duas: de um lado, a carreira dos praças, cujas graduações são de soldado a subtenente; de outro, a carreira dos oficiais, cujos postos são de tenente a coronel.
5. Entretanto, considerando a tendência já verificada em alguns estados da federação – que atualmente exigem o mesmo nível de formação (curso superior) para o ingresso tanto no quadro de praças quanto no quadro de oficiais–, já não há mais sentido em se manter a corporação cindida, como se houvesse duas polícias militares, uma dos oficiais, outra dos praças. Ou melhor, atualmente carece de legitimidade constitucional a conservação da tradicional distinção entre praças e oficiais no âmbito das polícias e dos corpos de bombeiros militares.
6. Nesse contexto, a proposta de implantação da carreira única representa a democratização das polícias militares, que, desde o final do regime autoritário, buscam reconstruir sua identidade e investem na reaproximação com a sociedade. Isso porque, atualmente, o sistema não apenas privilegia os oficiais, que não precisam percorrer os primeiros níveis da carreira para assumirem os postos superiores, como também menospreza os praças, impedindo-os de acessar os postos mais elevados da carreira. Portanto, a reestruturação da carreira dos policiais e bombeiros militares, ao estabeceler uma única forma de ingresso, promoverá a tão esperada igualdade entre os militares estaduais, reforçando, assim, a integração e a unidade das corporações.
7. Ao contrário da posição assumida pela Federação Nacional de Entidades de Oficiais Militares Estaduais – FENEME, para a qual a implantação carreira única seria inconstitucional –, é importante deixar claro que a Constituição de 1988 não faz qualquer referência à estrutura da carreira nas polícias militares e nos corpos de bombeiros. O que a Constituição estabelece, na verdade, é a apenas que “a lei disciplinará a organização e o funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança pública”.
8. Como se sabe, compete – privativamente – à União legislar sobre normas gerais de organização das polícias militares e corpos de bombeiros militares, podendo os Estados serem autorizados, mediante lei complementar, a legislar sobre questões específicas (art. 22, XXI, §, CR). Trata-se de uma questão federativa. Na engenharia institucional, a Constituição confere ampla liberdade de conformação ao legislador, tanto da União quanto dos Estados, de maneira que a implantação da denominada carreira única não encontra qualquer óbice de natureza constitucional, dependendo apenas da atuação do Congresso Nacional para aprovação de projeto de lei que altere/revogue a legislação vigente, no caso o Decreto-lei nº 667/69. Aliás, a título ilustrativo, esta é a proposta do PL nº 6.440/2009, de autoria do deputado Cap. Assumção (PSB/ES).
9. Em atenção às “oito razões” elencadas pela FENEME, impõem-se os devidos contrapontos:
9.1 Não há de se falar em violação ao artigo 37, inciso II, da Constituição da República e tampouco em afronta à Súmula nº 685 do Supremo Tribunal Federal – ou, ainda, à recente Súmula Vinculante nº 43 –, uma vez que o ingresso na corporação, seja no quadro de praças ou no quadro de oficiais, já ocorre por meio de concurso público. E isso não se altera na proposta da unificação das carreiras. A distinção não reside, portanto, na “exigência de aprovação em concurso público”, mas sim na modificação da “forma” de ingresso, que terá somente uma “porta de entrada” em razão da unificação da carreira. Ademais, a existência de uma Súmula não obstaculiza o trabalho legislativo e não tem o condão – fosse o caso – de impedir que o Poder Legislativo possa vir a tratar da matéria de modo diferente.
9.2 A proposta de unificação da carreira não constituiu nenhuma afronta ao Decreto-lei nº 667/69. Isso porque, como explicitado anteriormente, sua implantação ocorreria mediante o devido processo legislativo. Trata-se, em suma, da revisão do decreto-lei, que não é eterno e tampouco soberano, sobretudo no paradigma da democracia constitucional. Agregue-se, ainda, que a proposta de unificação da carreira não poderia ser considerada ilegal nem mesmo se implementada diretamente pelos Estados, por meios de suas respectivas legislações, uma vez que o decreto-lei não refere a existência de duas carreiras militares.
9.3 O argumento de que a proposta da carreira única viola o princípio da economicidade carece de qualquer substrato fático. Tal princípio diz respeito ao uso da menor quantidade de recursos públicos para atingir o maior gama de benefícios ou beneficiários. Segundo o artigo 70 da Constituição da República, a economicidade é um dos critérios para a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da Administração Pública. Para sua aferição, mostra-se imprescindível a análise e comparação, em concreto, de números, dados, indicadores, balanços, etc. Ou seja: argumentar abstratamente a violação à economicidade sem que haja qualquer prognose legislativa, envolvendo estudo de impacto orçamentário e projeção dos possíveis benefícios, para fins de avaliação de produtividade, é tendencioso e inadequado juridicamente.
9.4 Tampouco procede a invocação da “vedação constitucional do retrocesso” e sua associação à “carreira jurídica dos oficiais” ou à “gestão superior dos órgãos de segurança pública”. Isso porque, como se sabe, o princípio da proibição de retrocesso tem origem no direito alemão, mais especificamente na jurisprudência construída por seu Tribunal Constitucional Federal (Bundesverfassungsgericht) na década de 70, servindo para obstaculizar a supressão de conquistas civilizatórias dignas de proteção constitucional elevada, como são os direitos fundamentais sociais. A possibilidade de unificação da carreira de policial militar, por meio de processo legislativo, não assume, de maneira nenhuma, o traço de qualquer tipo de retrocesso, muito menos social.
9.5 A questão relativa à limitação constitucional de despesas com pessoal e à previsão orçamentária é um tema que deve ser analisado e enfrentado pelo Poder Executivo. Se não há estudo de impacto financeiro sobre a implantação da carreira única, então não é possível sustentar sua inviabilidade econômica e tampouco afirmar, genericamente, que os Estados – marcados por realidades tão diversas entre si – não possam vir a absorver tal demanda. Como o próprio adjetivo sinaliza, os orçamentos são anuais.
9.6 A suposição de que a carreira única implicará quebra da isonomia e da meritocracia revela-se falaciosa. No plano federal, ao estabelecer as normas gerais de organização das polícias militares e corpos de bombeiros militares, o legislador poderá instituir os critérios de promoção na carreira, a serem observados pelos Estados e pelo Distrito Federal. Assim como a própria carreira única, os critérios de promoção deverão ser objeto de discussão e deliberação política no espaço público e democrático – o Parlamento –, cabendo aos representantes do povo a construção de modelo que atenda as particularidades da carreira, respeitando a isonomia e a meritocracia.
9.7 O simples fato da proposta de carreira única conflitar com projeto de lei em tramitação no Congresso Nacional não possui qualquer relevância jurídica. E tampouco obsta a proposição de outros projetos de lei acerca da matéria. Registre-se, aqui, por oportuno, que o PL nº 4.363/2001 (Lei Orgânica Nacional das Polícias Militares e Bombeiros Militares) é um dos apensos do PL nº 6.690/2002, que está aguardando ser pautado no plenário da Câmara dos Deputados. O outro apenso é, precisamente, o já mencionado PL nº 6.440/2009, que propõe a carreira única.
9.8 Por fim, a questão previdenciária sequer é desenvolvida na Nota Técnia da FENEME, mas apenas colacionada entre as demais. De todo modo, não se vislumbra de que a questão previdenciária possa impossibilitar a implantação da carreira única nas policias militares e nos corpos de bombeiros, como se um argumento de viés nitidamente econômico pudesse prevalecer, em abstrato, sobre o aperfeiçoamento e a melhoria do sistema nacional de segurança pública.
10. Em uma democracia, não se pode interpretar a Constituição de acordo com um decreto-lei, mormente se este é oriundo de um regime que, inclusive, foi declarado “fora da lei” pela Lei nº 9.140/95. Não somente a Constituição de 1988 estabeleceu o novo como também o próprio legislador infraconstitucional considerou que todos aqueles que se insurgiram contra o regime militar estavam ao abrigo da desobediência civil, determinando, inclusive, a indenização de quem foi lesado por esse ancien régime.
11. Entender que a carreira dos policiais e bombeiros militares deve ser organizada de acordo com um decreto de antanho é colocar a Constituição de 1988 em um patamar abaixo de um decreto-lei. Quando a Constituição estabelece que “a lei disciplinará a organização e o funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança pública, de maneira a garantir a eficiência de suas atividades” não fixou qualquer “reserva de estruturação da carreira dos órgãos responsáveis pela segurança pública”. Não há, nesse dispositivo, qualquer eficácia diferida ou contida. Consequentemente, desde que obedecida a aprovação de uma lei e desde que a lei não extinga os órgãos de segurança pública, tudo nela dependerá da liberdade de conformação do legislador. Qualquer outra interpretação implica atribuir efeitos transcendentes a uma legislação anterior à Constituição.
12. É comezinho na teoria constitucional que a promulgação de uma Constituição inova a ordem jurídica. Ela recepciona ou não-recepciona a legislação que lhe antecede. Se recepciona, isso não quer dizer que uma nova lei não possa tratar a mesma matéria de modo distinto. A liberdade de conformação legislativa começa onde termina a eficácia da norma recepcionada dentro dos respectivos limites constitucionais. Se a Constituição não impõe parâmetros máximos/mínimos, não define as carreiras ou não traz outros elementos que possam “amarrar” a futura ação legislativa, então o novo legislador possui absoluta liberdade de estabelecer aquilo que o povo, democraticamente, decidiu em um regime representativo. Novos parlamentos, novas vontades, novas leis.
13. Em suma, após a redemocratização e o advento da Constituição Cidadã, o país passou por profundas transformações. Ao longo de quase três décadas, muitas foram as conquistas, embora ainda haja um longo caminho a ser percorrido na construção de uma sociedade mais livre, justa e solidária. Nos últimos anos, a reestruturação das polícias militares, em conformidade com o texto constitucional e o paradigma do Estado Democrático de Direito, tornou-se um tema candente e que, agora, exsurge na pauta do dia, sobretudo porque envolve uma área estratégica para o desenvolvimento do Brasil: a segurança pública.
Brasília, 15 de julho de 2015.
Elisandro Lotin de Souza Cabo da Polícia Militar de Santa Catarina Presidente da Associação Nacional dos Praças - ANASPRA Presidente da Associação de Praças de Santa Catarina - APRASC Membro do Conselho Nacional de Segurança Pública - CONASP
LENIO LUIZ STRECK Pós-Doutorado em Direito Constitucional Professor Titular do Programa de Pós-Graduação em Direito da UNISINOS Membro Catedrático da Academia Brasileira de Direito Constitucional Advogado – OAB/RS 14.439
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